Por Alcir Rodrigues
Procurando por textos sobre Mosqueiro, para organizar um pequeno banco de dados sobre a Ilha, encontrei, entre outros textos (de autores ja consagrados pelos leitores e pela crítica, de outros que ainda nao atingiram tais pincaros), poemas homenageando ufanamente ou denunciando as mazelas locais. Todos eles, de qualquer modo, tematizando a “Bucólica”, inscrevendo-a no âmbito dos registros gráficos, sejam eles literários, geográficos, históricos, sociais, culturais, etc., nao importa tal fato, no momento, já que o relevante e que se tenham dados (os textos) coletados sobre nosso distrito-ilha. O primeiro dos textos que compilei e este, de An`tônio Juraci Siqueira, de seu livro Piracema de sonhos:
Mo(s)queiro
Metamorfose de signos -- fonemas
roídos pelo tempo e pelo uso...
Foram tantos verões, tantos invernos
foram tantos poentes e alvoradas
que a ilha do Mosqueiro e dos encantos
perdeu seus moquens e seus mistérios.
Em que volta do tempo se perderam
os nossos ancestrais que moqueavam
piabas nas mares tepacuemas?
Hoje a ilha do Mosqueiro, em desencanto,
carrega um S enorme e sibilante
encravado no nome e no destino.
Um perfeito insight de Juraci associar o tema da decadência, muito alardeada quando se faz referencia a ilha e a suposta evolução linguística que, em tese, teria dado origem a palavra Mosqueiro, muitas vezes confundida com aquela que o dicionário registra como “lugar onde há moscas com abundância”. Nao e um poema de carater ufanista, como a maior parte do que e produzido em poesia tematizando o lugar. Em vez disso, evoca, apenas, uma afortunada Ilha de tempos idos, metamorfoseada agora em lugar de desencanto, uma Ilha que subsiste com seus atrativos aprazíveis somente na memória nostálgica dos mais idosos -- ou nas páginas amarelas e bolorentas de algum esquecido livro--, pois Mosqueiro contemporaneamente o que tem angariado não é exatamente em valores prós. E um lugar que clama por um retorno não de um filho pródigo, mas de um tempo de mais prodigalidade.
Garimpamos ainda outro belo poema, sucinto -- quase um poema-pílula --, que diz muito por meio de uma linguagem lacunar, sempre a ser completado pelo leitor o sentido sugerido, muitas vezes diretamente ligado a forma organizacional das palavras distribuídas no branco da página, em um isomorfismo raro entre expressão e idéia, a evocar a bela praia da predileção de Max Martins: Maraú (para alguns, Marahú), onde o poeta viveu por um tempo, na cabana chamada Porto Max. O texto integra o livro Caminho de Marahu, de 1983, e vem a seguir:
Mar-ahu
Não
é a ilha
Não
é a praia
E o mar
(de nos fazermos ao)
é só um nome
sem
a outra margem
Outro que surge, no mesmo livro, com as mesmas sutilezas, agora mais para um haicai que para um poema-pílula, é este:
Marahu
A praia
A tarde se desdiz
te diz
se estende
e te dissolve
Aqui Max explora a vacuidade possível das ondas, sempre sonoras, sempre efêmeras, porém tenazmente repetidas, solvidas dentro de si mesmas, tanto no aspecto vísuo-sonoro quanto semântico, tornando a praia um lugar de nostalgias, liquefazendo o ser dissolvido pela passagem do tempo, que parece fluir vagamente como o próprio pensamento, na contemplação da enseada do Maraú.
Na verdade, tudo o que se possa dizer sobre esses poemas, tanto de Max como de Juraci Siqueira, valem apenas como comentários, visto que os poetas já disseram tudo da melhor maneira possível, e o crítico ou analista, refletindo sobre sua obra, pode estar banalizando-a, no momento em que tenta explicá-la, interpretá-la, ou comentá-la.
Outro poeta a dedicar versos a Ilha chama-se Arnaldo Rodrigues. Em seu livro Cabeleira: o papa chibé em prosa e verso (1998), presenteia-nos com estes, a seguir:
Mosqueiro e tradução
Nao vou sair da praça
com pandeiro e maracá,
quero ouvir você cantar,
lá no Bispo,
até o sol raiar:
“Essa Ilha é minha onda,
nela vivo a navegar”.
Vou cantar
minhas lembranças:
Murubira, tanto mar,
Ariramba é só luar,
pelas noites enamorar
a morena flor mais bela,
a loirinha no arraial.
Vou esperar pelo Tá Feio,
um bloco e tradição,
carnaval tambem tem frevo,
carimbó e siriá,
quero ver você dançar
no Farol
até o sol raiar.
Mosqueiro é a tradução
do Rio numa cidade,
mas será que ela me invade
por capricho ou compaixão
ou será que é meu coração
que se mata de saudade?
Eu não vou daqui,
nao vou.
Diga ao meu amor:
“Não vou.”
Maraú de areia
No meu Maraú
de areia,
tabaroa faceira,
com decote que encandeia
e o tangará no galho seco.
Vida ribeira
costumeira:
joga a vida,
joga a rede,
veja a vela,
veja o mar.
Rede trança
caroa:
joga a vida,
joga a rede,
veja a vela,
veja o mar.
Vela velha
companheira:
joga a vida,
joga a rede,
veja a vela,
veja o mar.
Cinco Bocas
Uma butique de raças
na feira tupiniquim,
uma flor que não é do Lácio
mas que tem o seu latim
no grito do indio murubira,
no chalé que o branco inventou,
na ginga do negro
de Osmar e de Dodô.
Cinco Bocas, cinco cantos
cantando o carimbó;
cinco bocas, cinco santas,
Santa Senhora do Ó;
cinco bocas, cinco encantos,
Encantam o Poeta-Mor;
cinco bocas, cinco cantos,
decantam uma só voz:
“Olha Os Piratas,
Os Peles Vermelhas
e o Tá Feio,
mas que beleza,
quero pular,
não vou negar,
pois eu não minto,
são cinco bocas
multiplicando,
ah!... são outras mil
Chapéu Virado, Bispo, Farol
e o carnaval no corãção
do Brasil.”
Em primeiro lugar, nota-se o caráter de texto pensado de cada um destes poemas escritos por Arnaldo Rodrigues, em cujas linhas se pode constatar o trabalho de poeta burilador de sua linguagem, e poeta que os criou com conhecimento de fato, de causa mesmo, daqui da terrinha ilhoa de Mosqueiro, já que frequenta as bucólicas plagas desde o início da década de 1980, ocasião em que se inicia sua relação afetiva com tudo que seja desta Ilha. Além de aqui passar a ser residente por temporada, já que possui casa em Mosqueiro, o poeta ancora a referência de seus poemas em lugares e situações que coincidem com o real, ainda que esse fato nao seja necessário à qualidade dos escritos, pois seu verossímil nasce da
coerência interna a cada texto. Já sua qualidade, esta emerge indubitavelmente do “engenho e arte” do autor, do talento e da técnica, portanto, remontando ao que disse Camões.
Em segundo lugar, o autor, quando se atém a aspectos do exótico e do pitoresco, não o faz como um mergulho cego ou como uma aposta única em temas surrados que acabam por suscitar certo distanciamento do lado humano e sociocultural. Em vez disso, pretextando passear por um território já bastante visitado, porém revisitando-o por sendas inusitadas, explora com qualidade especial a ludicidade, o léxico do campo semântico da música, redescobre tesouros paisagísticos, tanto os naturais como os históricos, além de que faz incursao inusual pelas manifestações socioculturais do carnaval e das agremiações carnavalescas.
Por último, interessa-nos por excelência as referenciações de Arnaldo Rodrigues ao Bloco Carnavalesco Tá Feio, de tradição irnica e irreverente no seu modo de fazer carnaval popular, a quem o poeta ja deu sua parcela significativa de participação como brincante, como integrante da ala dos compositores e, principalmente, como representante-mor diante das autoridades, ou seja, como presidente da agremiação em tempos gloriosos de desfiles memoráveis.
No livro No passar da chuva: crônicas & poesias, Eduardo Santos, poeta já conhecido em todo o Brasil por ter dado entrevistas na tevê, como no Programa do Jô, também já famoso por “rodar” em muitos lugares em sua bicicleta estande, escreveu este poema para
Mosqueiro:
Recanto oficial
Mosqueiro,
Ilha sem outra igual
Recanto bucólico
Divino e natural.
Ponto de chegada,
Cais de partida...
De quantos e tantos
Amores de verao.
Tua beira-mar
Maravilhosa
De agitos mil...
Em teu palco ensolarado
Passam teus filhos, fãs
E caboclas
Que te exaltam
Clamam e flamam
Com sorrisos,
Bronzes e carnavais.
Tuas praias inesquecíveis,
Teu gosto doce e temperamental
Fazem de ti
O recanto oficial
Do amor, do calor,
Do verão.
O autor, assim como muitos outros, envereda pelo caminho do enaltecimento de certos caracteres aprazíveis da Ilha, mergulhando suas linhas melódicas no igarapé do ufanismo. Tal procedimento, nao sem alguma razão, tem sido considerado por especialistas na área como exploração de lugares-comuns, apelo à trivialidade e, portanto, uma dívida dos autores para com a originalidade e criatividade no trato com a matéria do poético. No entanto, não poderiam estar exagerando na condenação? Creio que aí a questão envolve uma crítica a certo grau de exagero ufano e quantidade demasiada de discurso laudatório, que estariam exaurindo um filão já há muito explorado de forma não criteriosa. Ou seja, vale fazer apologia? Depende.
Se nao for gritante, por que não? O problema é a exacerbação do elogioso ao ponto da aproximação do apolítico e alienante dos aspectos sociais e existenciais (que angustiam a consciência de pessoas de saudável senso crítico, inclusive a do autor destas páginas), afastando o leitor de uma relacão benéfica do ficcional com o real, aliciando-o muitas vezes ao abandono da leitura de conteúdo inquietante e questionador. Não sendo assim, doce pecado é banhar-se em lagoas de amenas águas paradisíacas e sentir o agridoce sabor da nostalgia pelo outrora querido e perdido, que não volta mais, sentir o aroma e frescor da brisa e do arvoredo que ensombreia e balança as redes nas varandas da saudade, nas modorrentas tardes de uma Mosqueiro que queremos, mas não podemos mais, re(vi)ver.
Os poemas de Eduardo Santos, de Arnaldo Rodrigues, Max Martins e Antonio Juraci Siqueira permitem muito pertinentemente as reflexões acima, para uma conclusão: escapar ao pitoresco e exótico, ou assumir em seus poemas a exploração dessa temática. Concluímos que não é o uso desse expediente, mas o abuso dele, que acaba por banalizar a literatura. Outra particularidade interessante a se ressaltar é a possibilidade de o poeta vivenciar de fato o que será, a posteriori, ficcionalizado ser tão pertinente quanto a de se imaginar tal vivência, para (também a posteriori) ficcionalizá-la. Ambas sao legítimas, mas a segunda possibilidade,
concretizada pela pena de um poeta inábil, pode resultar bem mais calamitoso do que se este fato se desse em relacão à primeira possibilidade. Contudo, toda essa discussão, indubitavelmente, ainda permanece em aberto.
E, para finalmente concluirmos, deixo registrado aqui um poemeto de minha autoria, que publiquei em um livro artesanal que nomeei de Setembro em brasa:
À Drummond
E como eu vagasse
numa praia de Mosqueiro
à hora vesperal
e só vislumbrasse
nas vagas da vazante
as vagas lembranças
doendo na memória,
como retratos poeirentos
clamando, aí num lampejo
incolor e insonoro
a imagem surge:
o mundo está à espera,
nada é gratuito,
deve chegar o tempo
e virá o recomeço.
… batendo leves soltas
asas as ideias se confundem
numa mixagem desordenada,
aparentemente incompreensível.
Me deixo fluir dentro de mim
e me absorvo por completo.
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